terça-feira, 14 de agosto de 2012

A aprovação das cotas e as várias faces do racismo dissimulado

No dia 8 de agosto o Senado Federal realizou uma sessão histórica que aprovou a instituição obrigatória do sistema de cotas em todas as instituições federais de ensino superior, além de institutos federais de ensino técnico de nível médio.
O que diz a nova lei
De acordo com o texto aprovado e que segue para sanção presidencial, as universidades e institutos, federais, terão que reservar 50% do total de vagas por curso e por turno para estudantes que tenham cursado todo o Ensino Médio em escolas públicas. Destes 50%, um percentual deverá ser destinada para negros e indígenas, de acordo com a proporção destes na população de cada estado, segundo os dados do último Censo. Tudo isto a ser aplicado em até 4 anos, período que as universidades terão para fazer a transição.
A partir de 2013 as universidades já deverão aplicar pelo menos 25% do sistema de cotas, ou seja, reservar 12,5% do total de vagas para estudantes de escolas públicas, tendo até 2016 para chegar aos 50% previstos na lei.
Também de acordo com a lei, pelo menos 50% das vagas destinadas aos estudantes de escolas públicas serão destinadas a estudantes com renda familiar per capita de até 1,5 salário mínimo (933 reais atualmente). O texto aprovado também determina que após 10 anos da aplicação do sistema de cotas , ele deverá ser revisado.
Um debate antigo
A aprovação do sistema de cotas sociais e raciais pelo Congresso Nacional é uma importante vitória do movimento negro que há décadas vem defendendo esta bandeira, principalmente a partir de 1999, quando o primeiro projeto de lei tratando do assunto chegou ao Congresso Nacional.
A pressão do movimento negro ao longo de todos estes anos garantiu que algumas universidades hoje já adotem sistemas de cotas e outras ações afirmativas. Em todos estes anos, o movimento negro travou o debate ideológico na sociedade acerca do racismo e de como ele se expressa na educação brasileira e foi capaz de constituir alianças com outros movimentos que defendiam as cotas sociais, até chegarmos ao texto da lei aprovada que combina os dois tipos de cotas.
Durante todo este tempo de tramitação da lei, o movimento negro conseguiu vitórias importantes no campo ideológico. Primeiramente, conseguiu fazer com o que o tema do racismo, que fora por muito tempo ignorado, virasse pauta das principais discussões acadêmicas nos últimos anos e até mesmo de discussões na Mídia impressa e televisiva. Segundo, conseguiu denunciar para toda a sociedade brasileira a enorme desigualdade com que negros e brancos têm acesso aos níveis de Ensino no país, principalmente o Superior.
O mito da democracia racial frente à realidade racista da Educação
O debate em torno das cotas raciais conseguiu revelar um país extremamente racista que até então considerava a ele próprio uma democracia racial. A teoria mítica e racista da “democracia racial” se mostrou completamente absurda quando contraposta a dados como os da PNAD 2008 que revelaram que 13,6% dos negros são analfabetos, contra 6,2% dos brancos. Ou ainda os dados que revelam diferenças entre o acesso de brancos e negros em todos os níveis de ensino. Enquanto 20,7% das crianças brancas de 0 a 3 anos frequentam creches, apenas 15,5% das crianças negras o fazem. Enquanto 98.4% dos brancos de 7 a 14 anos frequentam algum tipo de ensino, entre os negros o número é de 97,7%. Dos 15 aos 17, a diferença já aumenta para 86,6% dos brancos contra 82,3% dos negros. Enquanto a população branca estuda em média 8,3 anos, a população negra estuda em média 6,5 anos.
Mas é no Ensino Superior onde estão os dados mais chocantes e mais reveladores do racismo brasileiro na educação. Enquanto 35,8% dos jovens brancos de 18 a 24 anos frequentam o ensino superior, apenas 16,4% dos negros na mesma faixa etária estão nestas instituições.
O cruzamento destes dados revelam ao menos duas coisas: 1) existe uma grande disparidade no acesso à Educação entre negros e brancos; 2) além da disparidade observada em todos os níveis, existe no Ensino Superior uma barreira ainda maior para o acesso de negras e negros a este nível de ensino.
Cotas sociais X Cotas raciais
A defesa da necessidade de cotas raciais pauta-se no entendimento de que estas desigualdades não são naturais, mas fruto do racismo que está arraigado na sociedade brasileira e de que este racismo se reproduz em todos os aspectos de nossa vida social e também (ou principalmente) na educação: nas escolas e dentro das salas de aula. Portanto, o simples estabelecimento de cotas sociais é insuficiente para combater a disparidade no acesso entre negros e brancos ao Ensino Superior.
Nos últimos anos, os conservadores e racistas que nunca admitiram a existência de qualquer tipo dessas cotas, passaram a defender exclusivamente a ideia de aplicação de cotas sociais. Para além do oportunismo destas pessoas, este “recuo” foi sintomático da vitória ideológica do movimento negro neste debate. Percebendo a impossibilidade de continuar combatendo qualquer tipo de cotas, estes setores adotaram a tática do “mal menor”. Aceitam hipocritamente o estabelecimento de cotas sociais, para não terem que aceitar aquilo que é mais importante para eles evitar: o ingresso de negras e negros nas universidades.
Esta tática de contrapor cotas sociais a cotas raciais, como se elas fossem excludentes foi a tônica do debate feito pelos conservadores nos últimos anos.
A falsa defesa da autonomia universitária
Agora, diante da aprovação no Congresso Nacional do sistema de cotas, parte destes conservadores lança desesperadamente sua última cartada no argumento de que a lei aprovada feriria a autonomia universitária.
É preciso lembrar que a lei aprovada no Congresso ainda precisa ser submetida à sanção da presidenta Dilma para se transformar de fato em lei. E é justamente, a esta última chance que se agarram os conservadores de todo tipo.
O objetivo é evidente: pressionar a presidenta para que ela vete total ou parcialmente o projeto.
A estratégia para pressionar o veto presidencial segue duas táticas paralelas que se complementam. Uma delas é defendida pelos conservadores mais “desavergonhados”que utilizam os velhos argumentos de sempre para combater as cotas. A outra é usada por conservadores mais “enrustidos” que tentam se travestir de um argumento pretensamente progressista, como a autonomia universitária, para impedir a sanção presidencial.
Na linha de frente deste segundo grupo estão a SBPC(Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência), que lançou nota contra aprovação da lei e a ANDIFES(Associação dos reitores das IFES) que também se posicionou contrária à lei.
Nas palavras da pró-reitora da UFPE, Ana Cabral, a lei é “preocupante” por “tolher a autonomia universitária”. O reitor da UFF, Roberto Salles, classificou a medida como uma “intromissão indevida”.
É interessante estes dirigentes universitários só se preocupem com a autonomia universitária quando se trata de aplicar ações afirmativas na universidade. Quando eles mesmos são responsáveis por ferir a autonomia universitária quando realizam convênios com empresas privadas que passam a atuar livremente dentro das universidades públicas, utilizando-se de recursos públicos para seu próprio benefício.
Ao que parece, a influência de interesses privados na universidade PÚBLICA é menos preocupante para estes reitores e pró-reitores que a decisão do Congresso Nacional, que por mais questionamentos que possa e mereça receber, é uma instituição pública.
Diante disso, precisamos perguntar a estes dirigentes das universidades, qual a autonomia universitária defendida por eles? Autonomia diante da sociedade, que financia a universidade e é a verdadeira “dona” dela ou autonomia diante de interesses privados?
A autonomia universitária defendida historicamente pelo movimento social de educação preconiza autonomia diante dos interesses de governos ou de grupos privados.
Esta autonomia é condição necessária para que a universidade desempenhe seu papel como instituição pública e não partidária do governo de plantão ou de grupos econômicos. Porém, esta autonomia não pode se confundir com soberania ou independência da universidade em relação à sociedade, sob pena de cair no mesmo erro, e a universidade se tornar refém dos interesses de grupos minoritários na sociedade.
A comunidade universitária por mais heterogênia que seja, é um grupo pequeno que não representa a diversidade social existente. A própria necessidade de cotas demonstra isto. Ora, diferente do que alguns, por ingenuidade ou cretinismo, possam pensar, a universidade não pertence à comunidade universitária e sim ao conjunto da sociedade. Portanto, a sociedade não só pode, como deve intervir na universidade. O Congresso Nacional, por mais críticas que se possa fazer a ele, é um dos instrumentos que a sociedade brasileira possui para isso. E sua “intromissão”nesse caso, apesar de tardia, é mais do que devida.
Além do mais, cabe lembrar que as universidades federais brasileiras nada ou pouco têm de democráticas. Suas principais decisões são tomadas por conselhos que representam principalmente os interesses de grupos minoritários na própria comunidade universitária.
Uma universidade elitista como a nossa é incapaz de mudar a si mesma. A defesa da autonomia universitária nesse caso, longe de ser um argumento progressista, é mais um ataque conservador, que se soma a tantos outros daqueles que tentam de todas as formas perpetuar as desigualdades raciais em nossa sociedade.
Afinal de contas, elas continuam existindo, porque beneficiam uma elite que é incapaz de abrir mão de qualquer de seus privilégios. E o acesso à universidade é um dos mais importantes deles.
Anderson Rodrigo
Estudante de História da UFPE e militante do
Fórum de Juventude Negra de Pernambuco

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